(Prt) Jorge De Sena - Choro De Criança, ---NUTY---, Bossa Nova LATINO

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Jorge de Sena

 

 

 

 

 

CHORO DE CRIANÇA

 

 

  

It is in their Power to hinder
Instruction but not to Instruct, just as
it is in their power to Murder a Man
but not to make a Man.
(Está no poder deles prejudicar a
Instrução mas não o Instruir, tal
como está no poder deles o Matar
um Homem, mas não o fazer um Homem.)
William Blake - Poetry and Prose,
Nonesuch Press, p. 626.

E não há ninguém mais no mundo a
não ser esse menino chorando.
Carlos Drummond de Andrade -
"Menino chorando na noite"
(Sentimento do Mundo, 1940).

"Porto, 1942"



   Na noite circulavam, como claros cones de projectores varrendo-a, fogachos fuliginosos. A rua descia, larga, escura, abrupta, de pedras irregulares, brilhantes de humidade fosca. Como que ao fundo dela, um navio apitava. As árvores, momento a momento, eram sacudidas por um vento que se não sentia, e que saltava de umas para as outras, estremecendo-lhes algumas folhas só. De uma casa oculta na sombra, ou de trás de um muro, ou da rua mesma onde não havia ninguém, veio um choro de criança. Quase não era um choro, mas um gemido estertorado e lamentoso, lamúria sonolenta e triste, teimosa, uivada, exausta De criança. Criancinha. Menino? Menina? Aonde? Quando o navio ou lancha apitou de novo, o relógio da torre deu lentamente badaladas secas que ecoavam brônzeas só depois, como se o eco sonoro e límpido não fosse o da secura rachada do primeiro som. A madrugada não tardaria a romper? E o apito fino, estrilado, era de um comboio de mercadorias, muito longínquo, cujas ferragens sem molas chocalhavam, tunca- -tum-tchá-tchá-tum, nas sucessivas juntas dos carris. No negrume do fundo da rua, alvejava um banco de pedra, que parecia amarelo, um dente cariado e sujo, pousado apenas, e com nódoas pardas. Dos passos que chiavam na descida, as nódoas foram pouco a pouco emergindo como alheias ao banco, dois vultos acochados, cada um na sua ponta, e ao pé de cada um sacos de trapos, de cujos puídos rasgões brotavam, rígidos, não trapos, mas papéis. Quando os passos pararam, e o chape-chape invisível das águas na muralha, do outro lado da avenida escura, pareceu que os prolongava, os dois vultos agitaram-se num acomodamento em que, de costas um para o outro, como que dormiam suspensos no gesto de catarem-se. Não se distinguia no escuro, e dos farrapos que enroladamente os encobriam, a idade que teriam, se é que a idade contava naqueles novelos ressequidos, cheirando tenuemente a palha podre, e cuja carne perdera a natureza nas crostas sem suor das noites frias. A lamúria, o gemido, o choro, vinha viscoso pela rua abaixo, atravessava como um cheiro até ao banco e, rodeando-o, ia sumir-se escorrido na muralha do cais. Foi então que, parado entre as dois vultos, aquele que viera vindo reparou que eles falavam, num ciciar roufenho que o gemida fazia límpido. No entanto, eram grasnidos o que ouvia, um restolhar de goelas sem governo e sem força, como o do vento na folhagem das árvores. Sentado à beira do banco, entre grasnidos que se não cruzavam, o que chegara descalçou os sapatos, para esfregar de leve, com a perna traçada, ora uma, ora outra, os pés doridos. Um frio maior, e a carícia dos dedos cuidadosos, afagavam lentamente os calos desconformes que se erguiam duros, repregados, firmes. Tentou, das dores como aguilhões ou como queimaduras, e dos grasnidos, e do chape-chape na muralha onde escorria o estertor infantil, recordar o que andara, as horas que ouvira; e os ecos dos seus próprios passos, ressoando-lhe ainda nas têmporas, também não se lembravam.
   À tarde, enquanto o sol dourava de um vasto nevoeiro de púrpura a curva larga do rio, as grades do cemitério, pontiagudas e ferrugentas, lanceolavam a derrocada encosta até à linha que surgia e fugia, entre dois túneis negros. Além, no fundo da restante encosta, onde havia árvores despidas e telhados em ruína, o rio estreitava-se, já sombra sem nevoeiro nem púrpura. Gritos vinham soltos da outra margem, onde, nas escarpas de que irrompia a ponte com o seu arco frágil, vagueavam vultos que ora se abaixavam e sumiam, ora se recortavam no azul tão pálido que pontos brancos circulavam nele, do olhar cansado. No recôncavo de água parda alastrava dos bosques verde-negros uma praia vazia, que apenas crianças como insectos percorriam. E, mais além ainda, além do rio que na curva se escondia, os montes azulavam-se num sibilo de nuvens baixas que o poente chapeava de laivos dardejantes, sobrepostos a um negrume compacto que resistia a colorir-se deles. Um cheiro de lama, de escórias de comboio, de lixo podre, pairava-lhe em frente das narinas. E, na tarde que esfriava, o cheiro subia bem visível, como tremulina de crepúsculo, entre ele e a mole gorda e amarela de um casarão de asilo, sobranceiro ao túnel cuja boca negra parecia, em baixo, o esgoto mais recôndito, mais secreto que o verdadeiro, das vidas que haveria atrás de tais vidraças refulgindo baças. Mas, mais recôndito do que esse esgoto imaginado que o fez sorrir, outro havia, lá em cima da encosta, no sopé do muro baixo do cemitério. Era uma boca redonda e negra, de pequeno diâmetro, e dela escorria, regando os papéis, a palha, o lixo indistinguível despejado ali, uma baba escura, um pingue-pingue tranquilo. Estremecera fascinado pelo licor da morte, e desviara os olhos que, na tremulina, agora cheiravam satoposto outro cheiro subtil e adocicado: um cheiro de amarguras, um cheiro de vidas cortadas, um cheiro de esperanças traídas, um cheiro de promessas não cumpridas, um cheiro de carne saudosa, de posses que não houvera, adiadas, recusadas, ou não conseguidas. De súbito, ao lado do cano hiante, um monte de lixo movera-se e levantara-se vermelho à luz do sol. Era um mirrado, hirsuto, ossudo corpo de homem, cujas pernas bambas se enterravam num molho de trapagens. Abrindo os braços, o homem espreguiçou-se nu, e coçou-se nos sovacos, na cabeça, no peito, na flacidez do sexo, e, escondendo-se-lhe as mãos, no desvão das nádegas. E com aplicação arrancava dos pêlos algo que contemplava adiante dos olhos, quase com o braço estendido, e largava invisível, abrindo os dedos, na encosta fétida. Estava assim ocupado, ignorando deliberadamente a presença de espectadores, quando as trapagens junto dele e aos pés dele se agitaram, e delas emergiu uma sarapilheira informe de cabelos longos e grisalhos, que era uma velha de nariz adunco, e de dedos longuíssimos que avançaram para as pernas do homem. E os dedos começaram a catar nos desvãos dele, que lhe ficavam à altura do nariz, alguma coisa que levavam à loca e ela cuspia depois. O homem deixou de catar-se nessas partes, para confinar-se ao peito, aos sovacos, à cabeça. E, num movimento brusco, agarrara então os cabelos da velha, e torcera-lhe o rosto para o espectador. A velha delirou: metia o nariz por baixo dele, que alargava as pernas, e parecia catar com o nariz, e mostrava as dedos unidos sobre a caça ao espectador atónito. Escorregando no carreiro íngreme, voltara-se para afastar-se; e, quando uma corcova enrelvada do terreno lha encobria, viu, num último relance, que a catação prosseguia metódica, com as vítimas lançadas, como oferendas, ao modesto abismo em que pingava o cano. Sentia terríveis comichões nas pernas. E o fumo estridente de um comboio, saindo de um túnel para entrar no outro, envolvera-o quente e fuliginoso.
   Num estrilo demorado e ondulante, um apito de comboio, de barco, ou do cansaço que era agulhas nos pés, ficou pendente, sem varar a noite, e misturava-se, entre os olhos e os dedos, ao grasnar dos vultos a cada ponta do banco. Seriam homens, mulheres, homem e mulher? Grasnavam. E um deles, estendendo um braço longo e nu, porque tal como o estendia a manga fugia pelo braço acima que parecia crescer de umas costas curvadas, tinha nos dedos um pedaço de pão. Sentado entre os dois vultos, não soube ansiado que fazer. Levantar-se? Curvar-se? Inclinar-se para trás? Para que o pão passasse de um para o outro. Mas o pão parara em frente dele, e fazia movimentos leves e bruscos, de quem acena, oferecendo-se. Levantando uma das mãos que haviam ficado perplexas nos dedos do pé alçado na perna cruzada, aceitou a côdea dura e crespa como um calo. E, logo depois, pousou o pão no banco (e o braço desaparecera, recolhendo-se aos trapos obscuros), calçou--se precipitadamente, levantou-se, e seguiu pela avenida adiante. Os grasnidos, muito agudos, casquinavam. Qualquer coisa rolou com violência aos seus pés que escolhiam as pedras menos pontiagudas em que pousarem. Era o pedaço de pão, que ficou brilhando na treva.
   Depois de deambular o fim do dia, tinha entrado no quarto já de noite, sentindo, no estômago sem senhas para a cantina, um enjoo que não consentiria comida. Deitara-se sobre a cama. Ficara a olhar a porta envidraçada, com os vidros foscadas de papéis colados, que separava do seu o quarto interior, onde dormiam as criadas da pensão. Rente à porta envidraçada estava, a colcha branquejando, a cama do companheiro de quarto. De vez em quando, a grande porta do prédio rangia nos gonzos - iiiim - para abrir-se, e - ôoom - fechar-se num estrondo cauteloso que não menos estremecia o prédio. As escadas estalavam degrau a degrau, e uma porta, noutro andar, abria-se e fechava-se. Num som surdo, arrastado, de chinelos velhos, as criadas haviam acabado por descer a escada, e acenderam a luz no quarto ao lado. Ficavam sempre a cochichar interminavelmente, com risinhos e gritos abafados de quem recebe cócegas e se torce agradadamente nelas. Uma claridade esbranquiçada pairava nas papéis iluminados das vidraças, desenhando a escuro os rasgões recolados. Os risos envolviam-no de tepidez, amaciando a sua agonia; e pouco a pouco os arrancos desciam do estômago para o sexo. Nenhuna delas viria, à noite nunca vinha porque fingiam esconder-se uma da outra, mas só à tarde, quando a pensão parecia dormir numa poalha sombria do sol que entrava mal nos corredores tão altos, e se podia ficar em casa, dentro do quarto, como que esquecido, e expectante nas teias acumuladas nos cantos. Abriu os olhos. O companheiro estava no meio do quarto, com a luz acesa, e despia-se, com gestos e expressões que o distendiam de sensualidade dedicada às criadas vizinhas que não se rendiam à sua extrema juvenilidade. Ia representar-se o espectáculo do costume. Deitada em cima da cama, o rapaz excitava-se, estorcia-se, dava pancadas nas vidraças, e gritava para o quarto ao lado: - Ai, olhem só para isto, filhas, acudam que pega fogo! -. Ao lado, os risos e a agitação, abafados, recrudesciam. E aquilo durava uma boa meia hora, antes de o rapaz ou elas apagarem primeiro a respectiva luz. Ou até ele mesmo, irritado, se levantar e apagá-la. Mas foi diferente. Quando elas apagaram a luz, o rapaz, de joelhos em cima da cama, roçava-se pela porta envidraçada, batia com o membro nos vidros, punha-se de perfil, e os risos, ao lado, quase se não ouviam.
   - Vejam, vejam, que vale a pena! -. E, com o sexo na mão, parecia querer forçar a virgindade de um dos quadriculados que era só de papel. Semivoltou-se: - Vou meter-lhe os tampos dentro -. E meteu. Ele levantara-se da cama, vestira-se, e saíra para a noite.
   A avenida serpeava ao longo do rio que se não via senão pelos reflexos, balanceantes na água, de luzes esparsas na outra margem. As pedras do calcetamento da avenida corcovavam-se de gastas e polidas, brilhando mais redondas e maiores no húmido reverberar dos candeeiros espaçados. Ele ia seguindo os carris do eléctrico, que só se iluminavam de uma claridade que à frente dos passos se esgueirava em fímbrias paralelas. Nem vozes da outra margem, nem apitos, nem o choro da criança escorrendo na muralha ali se ouviam já. Entre o negrurne que era o rio, e os altos prédios arruinados, atrás dos quais as rochas eram mais altas e se acinzentavam de um livor que vinha, flutuante e mole, sem origem, deslizar por elas, também os passos dele se não ouviam. Uma calçada breve, que parecia escavada na rocha, subia para um portão de ferro, meio aberto. Subindo-a, para esconder-se do alinhamento curvo da avenida, começava a urinar contra o recanto, quando escassos e contidos ruídos, atrás do chapeado do portão, fizeram suspender-se o fervilhar do líquido nas ervas incrustadas rentes. Mas os ruídos suspenderam-se também. Ajeitando novamente as pernas, recomeçou. E, quando acabava, um ruído metálico de fivela e um chiu surdo sucederam-se rápidos atrás do portão. Desceu rapidamente, batendo os pés com força que lhe doía na nuca; e, contornando para a avenida a rampa, ficou encostado a ela, onde afinal o muro de suporte, de pedras sobrepostas e musguentas, estava, junto ao cunhal do portão, ao nível da sua cabeça. Um chiar de saibro pisado soou ao pé dos seus ouvidos. Levantando a cabeça e os olhos, viu dois homens, quase um rapazinho um deles, que se inclinavam a espreitar a avenida. De baixo para cima, havia as calças deles e, ao cimo das calças, um colarinho, ombros de casaco, e rostos que, na sombra, não tinham olhos. O mais velho sumiu para trás, e logo lhe viu as solas branquejando nos movimentos altos da corrida em que fugia pela avenida fora. No mesmo instante, o outro estava ao pé dele, quase da sua altura mas mais magro, e, estendendo-lhe para a cara um cigarro, pedia numa voz de desafio: - Dá-me lume? -. Tirou do bolso os fósforos e deu-lhos. Atrás do recôncavo das mãos, o fósforo acendeu-se, iluminando uma cara ossuda e macilenta, em que a distância entre os olhos e a boca era muito extensa, ocupada pela cana de um nariz longo e achatado. Restituindo-lhe a caixa, o outro disse: - Então? Qu'é que há? Passeando a estas horas? -. Era uma voz muito jovem, mas cansada, que o tinha fitado do fundo dos olhos duros, quando o fósforo se apagava. Não respondeu, e afastou-se. Os passos do outro patinharam nas pedras da avenida, e vieram, como viu de esguelha, acertar pelos dele. Foi a sua vez de, parando, perguntar: - Que é que você quer? -. A hostilidade raivosa da voz fez recuar o outro que parara mas perguntou: - E que é que você queria quando parou a espreitar ? -. - Eu? -. - Sim, o senhor escondeu-se na rampa para nos ver sair. E, quando a gente passámos no largo, estava sentado num banco e veio atrás de nós -. - Não queria nada. Nem sabia que estavam ali -. Novamente um comboio distante, sem apitar porém, tum-cá-tchum-tá-tum-cá-tchum-tá-tum, matraqueou nos carris. - Mas ficou encostado à rampa -. - Fiquei -. - Porquê? -. - Não sei porque -. - Não sabe? Quer que eu lhe ensine? -. A mão estava parada contra a cara do outro: dera-lhe uma bofetada. O outro acertou-lhe um pontapé nas canelas, e voltava-se para fugir, quando ele o agarrou pelos ombros e o derrubou a murros. O outro debatia-se, rolaram. Ele nem sentia senão como choques surdos as pancadas que recebia. Mas o outro, mais fraco, torcia-se e resistia por baixo dele, sem conseguir já atingi-lo. Sentado quase no peito do outro, segurava-lhe agora os punhos. - Larga-me, filho da puta - rosnava o outro; e pouco a pouco foi dizendo: - Larga-me... Largue-me... Deixe-me... Deixe-me -. Não o deixou sem apalpar-lhe os bolsos, sem estar certo de que ele não trazia navalha. Levantou-se, ajudou o outro a levantar-se. O outro, porém, desabou na rua, acocorado, gemendo baixinho, em soluços engasgados: - Viu-me com aquele tipo... Deu-me uma carga de porrada... Mas eu sou um homem... Juro que sou um homem -. E, depois, de joelhos, abraçando-se-lhe às pernas, sacudindo-o, com as lágrimas brilhando pela cara abaixo, era apenas um menino desesperado: - Eu sou um homem... Acredite que eu sou um homem...
   Na claridade crua do quarto em que vivia sozinho o seu colega Amaral, este, sentado ao pé da janela de enormes portadas, dizia-lhe: - Mas que hei-de fazer? Estou perdido. Vou matar-me. Estou impotente. Não consigo.
   Olhando-o pequenino e vigoroso, com um ar atlético desmentido apenas pelas pupilas trémulas atrás dos óculos grossos, rira-lhe na cara: - O que estás é maluco. Isso trata-se. E pode ser ocasional. Não sejas criança.
   O Amaral levantou-se da cadeira, encostou-se à portada da janela, uma portada antiga que, aberta, avançava alta e larga pelo quarto dentro: - Jura que não dizes nada a ninguém. Não é ocasional. Há muito tempo que não consigo. Por mais que queira.
   - Não digo, claro que não digo. Mas deixa-te de tolices. Tens de ir ao médico.
   - E se o médico conta? E se alguém desconfia?
   - Não conta. E quem vai desconfiar e como? A única pessoa desconfiada és tu.
   - Mas eu quero, eu não penso noutra coisa.
   - É o que tu julgas. Mas lá no fundo, bem no fundo, alguma coisa te aconteceu que te faz não querer.
   - Eu tenho tomado tudo quanto há, fugido de uma farmácia para outra, e não dá resultado.
   - Porque não é de remédios que tu precisas.
   - Então de que é que eu preciso? - e viera sentar-se, com a cara entre as mãos, de costas para ele, na beira da cama estreita que parecia minúscula no quarto enorme.
   Ficara olhando os livros dele, empilhados em cima da mesa, para sobre a qual uma lâmpada era puxada por uma corda presa à parede. E fixara os olhos, depois, nas costas largas, cuja musculatura se desenhava seca sob a camisa esticada. Dentro daquele corpo, atrás daquela nuca curvada, ele sabia o que havia: a imagem de um pai semilouco e tirânico, da mãe pretensiosamente intelectual, de ambos como professores pedantes, do irmão muito mais velho que o tiranizava também, e a timidez agressiva que se gastara rapidamente em orgias exibicionistas, de preço módico. Sentiu-se muito mais velho, que não era, ante aqueles terrores infantis. Deu a volta à cana, aproximou-se.
   - Olha, Amaral.. e foi para me dizeres isso que tu me chamaste?
   O outro levantou para ele o rosto afogueado, os olhos brilhantes: - Juras que não dizes nada a ninguém? Aconteça o que acontecer? Tu não me tomaste a sério, nunca tomaste.
   Sentara-se ao lado dele: - Sabes bem que sou teu amigo, e que não posso, portanto, queira ou não queira, deixar de tomar-te a sério. E já te disse que não direi nada a ninguém. De resto, quem sabe, agora que falaste, experimenta outra vez... Quem sabe se já consegues.
   - Achas que sim? Que eu não tenho sequer coragem de olhar para a mulher que fica feita parva ao pé de mim, farta de puxar por um mangalho murcho.
   - Isso é o menos. A qualquer delas, quantas vezes já isso aconteceu, com este e com aquele! Mas experimenta outra vez.
   - E se não consigo?
   - Olha, se não conseguires, arranjas por aí uma pequena séria, começas a namorá-la, e esfrega-te bem nela.
   - Mas isso é o que eu faço com a minha pequena.
   - Qual?
   - A que tenho lá na minha terra.
   - Pois será. Mas guardas os colhões cheios para vir despejá-los aqui. E entopes tudo.
   - E tu queres que eu lhe ponha o caralho nas mãos?
   - Eu não quero nada. Ao menos, pensa nisso - e deu-lhe uma palmada nas costas.
   O Amaral sorriu: - Tu não sabes o que é a minha vida, tu não fazes ideia do que é a minha vida. Do que eu tenha passado, sozinho no meio de todos. Nunca tive ninguém, e agora até o caralho me deixou. Vai-te embora.
   - Queres mesmo que eu me vá embora?
   - Quero. Mas não digas nada a ninguém.
   - Vais tentar autra vez?
   O Amaral levantou-se, foi até à janela, e ergueu o braço ao longo da imensa portada, e ficou a olhar a mão espalmada lá em cima.
   - Sabes? Não imaginas o horror que é para mim morar neste quarto - e voltara da janela, e ficara parado diante dele, com as mãos afundadas no bolso das calças, remexendo nervosamente. Mas os olhos passeavam no ar.
   - Porquê?
   - Porque aqui no quarto ao lado moram um rapazinho e uma rapariguinha... Já os vi... São quase crianças... Ele não é maior do que eu. Fugiram os dois, são operários, vivem aqui escondidos. Não imaginas o inferno que é. Durante a noite inteira, e à tarde, e aos domingos, parece que deitam a cama abaixo, e a casa abaixo -. Aproximou-se da parede em que estava o prego com o cordel da lâmpada, e bateu-lhe com os nós dos dedos: - É um tabique. Ouve-se tudo. Como é que ele aguenta? Como?
   Não respondera, e o Amaral continuara: - Eu sei porquê. Puta de vida. Eu ouço-os. Parecem doidos. Até choram.
   Levantara-se. O Amaral logo se afastara dele, como sempre, para não sentir a diferença de altura. E voltara à janela, quando ele saiu para a tarde lá fora.
   Com a cabeça do rapazinho contra os joelhos, sentiu que a fome o entontecia. Teve uma vontade súbita de comer, uma dor lancinante que mordia no fundo do estômago, rente às costas, e que se distribuía, irradiada, em dores surdas pelo corpo, onde deviam estar a doer-lhe as pancadas que recebera. Pegou no rapaz pelos sovacos, e ergueu-o. Como era leve! Pô-lo de pé.
   - Está bem, acredito que você é um homem. Então, dê-me de comer.
   - Ahn? - e os olhos arregalavam-se encovados, e um hálito de pasmo vinha da boca aberta.
   - Tenho fome, dê-me de comer.
   - Fome?
   - Sim. Você sabe o que é fome? Eu também tenho fome.
   - O senhor?... Você?
   - Eu. Venha daí.
   Foram andando pela avenida, seguindo com ela o curso sinuoso da margem, até que, de repente, um grande edifício a afastava e encobria. No largo ensombrado ainda mais pelo edifício imenso, e em que a claridade era, baça e parda, neblina pairando acima do chão em novelos lentos, havia ao fundo, no quiosque, luz, uma luz amarelada e fumarenta, cujos novelos próprios passavam esguios por entre os da neblina. Agarrando o rapaz por um braço, arrastou-o para lá: - Você vai pagar-me uma sande com o dinheiro que recebeu -. Sentiu a reacção no braço, dentro dos dedos com que o apertava, e acrescentou: - Você come também.
   Quando chegavam ao pé do quiosque, vultos a ele encostados, e que a luz recortava, como que rolaram na superfície do cilindro que ele era, e ficaram na sombra dele que a luz fumarenta fazia mais espessa. Lá dentro, uma mulher gorda, com um xale preto pela cabeça, deu a cada um, em movimentos lentos de torcer-se para o lado em que os pãezinhos estavam, a sande pedida, e a mão, após a última, demorou-se aberta e estendida, aguardando o dinheiro. Sem olhar para ele que comia fitando-o, o rapaz meteu a outra mão ao bolso interior do casaco, e, relanceando em torno os olhos baixos, tirou uma nota que a mão gorda agarrou. O troco interminável que a mulher rebuscava sob saias e xales, e numa gavetinha debaixo de onde estavam os pãezinhos, quase deu tempo a que ele, na sofreguidão da fome, acabasse de comer o seu. O rapaz, de olhos pregados nos movimentos da mulher, cujas mãos quase se não viam nunca, segurava na mão direita o pão que não trincara, enquanto a segunda continuava na ar, à altura do bolso de dentro do casaco. Por fim, o troco veio. Para contá-lo, o rapaz pousou o pão no balcãozinho do quiosque, e conferiu atentamente as moedas. Entretanto, ele acabara de comer. - Paga um bagaço, anda -. O rapaz semivoltou a cabeça, hesitou com o troco nas mãos, e escalheu das moedas o necessário: - Dois bagaços -. A mulher espetou obliquamente o queixo para uma enfiada de garrafas sujas que estavam do lado oposto aos pãezinhos, por cima de uma bacia de água escura. Tirou da água dois copinhos que pousou no balcão; e, inclinando-se para a frente, medindo com o nariz o líquido que ia vasando, encheu-os com cuidado. O rapaz, que guardara o troco no bolso das calças, pegou num dos copos, e esboçou um sorriso: - À sua... -. Emborcou-o e engasgou- -se. Ele bebeu devagar, desviando os olhos do congestionamento que, no rosto magro, era mais vexame que asfixia. Os vultos que rondavam na sombra do quiosque, deslizantes, enchumaçados em capotes, saiões negros, bamboleavam-se à beira da claridade. O rapaz começara a comer o seu pão. Agarrou-a outra vez pelo braço: - Vamos -.
   Tinham andado uns passos, e o quiosque, na curva que os prédios esguios faziam, era já só a luz amarelada e fumarenta, agora cortada outra vez de vultos. O rapaz parou, sacudindo o braço num gesto brusco: - Onde é que a gente vamos?
   - Você vem comigo.
   - Ah.
   Deu-lhe um abanão violento: - Estás enganado. Mas vens comigo.
   O outro tentou frouxamente escapar-se, numa lamúria: - O senhor é um bufo. Eu bem sabia. Vai levar-me para o Governo Civil. Não me prenda, eu nunca fui preso. Eu não tive a culpa. Eu não fiz nada. Foi aquele gajo que...
   - Cale-se. Não vou prender nada.
   O sanduíche, no estômago, parecia uma pedra rolando a cada passo. E, em volta da pedra, as dores dos pés vinham concentrar-se, ao calor do bagaço, pondo-lhe formigueiros nos dedos que apertavam o braço do outro. A pedra rolou a um lado e outro pela calçada íngreme, em que portas se entreabriam sobre corredores negros e sem fundo. Depois, ao cimo da outra rua larga, em que os passos deles ressoavam, os janelões turvamente envidraçados da Estação ferroviária fizeram com que a pedra se aquietasse no estômago, flutuante e tépida, num cheiro de fuligem suspensa. Atravessaram a praça em diagonal, contornando a estátua. Nos candeeiros altos, a luz sumia-se piscante no alvor da madrugada. Os florões e as figuras de pedra dos prédios perdiam o relevo da iluminação nocturna, ganhavam uma lividez hialina e matinal. O rapaz disse: - Eu ia para o trabalho, entrar no meu turno... -. Ele não respondeu. Continuaram a subir pela rua estreita, e a cada passo se desviavam de caixotes de lixo voltados, que um ou outro cão farejava desiludido. Águas escorriam de portas para a rua. Meteram à travessa; e, quando chegaram ao pequeno largo no fim dela, entraram nas escadinhas cujos degraus, ondulados de gastos, pareciam ser de visgo. À luz da manhã que rompia, dois enormes sacos de lixo estavam num dos patins da escada, encostados ao gradeamento. Debruçado das grades, e cuspindo para baixo como uma criança, havia um velho cujos pés se embrulhavam de trapos enrolados, atados com cordéis. O velho voltou-se e disse: - Isso é que foi pândega, ó canalha -. Foram pela ruela estreita, e, no impulso que os levava, o rapaz parecia saber o caminho. Mas, na esquina, foi preciso arrastá-lo para a outra rua que, sinuosa e já clara, se encurvava adiante. Na porta do casarão, entreaberta, estava o latão a transbordar de lixo. Ao entrar, o rapaz tropeçou nele, voltou-o, e o passeio ficou cheio de papéis, cascas, restos de comida. Do portal próximo, levantou-se um monte de trapos, que veio remexer neles. Enfiou o rapaz para o corredor sombrio da entrada, empurrou-o pela escada acima, meteu a mão por entre as grades da porta que separava a escada e o corredor do andar, abriu o fecho, e entraram. Dando socos na porta logo à esquerda, chamou: - Amaral! Amaral! Abre, sou eu -. A porta, que era dupla, cedeu e escancarou-se. Com o rapaz na frente, disse: - Olha, trago-te aqui outro que também julga que não é um homem. E está tão aflito como tu -. Um uivo soluçado do rapaz, que melhor sentiu na mão com que o empurrava para dentro do que ouviu, fê-lo afastar-se e olhar. A cama estava vazia. Da portada imensa da janela, e recortada a cabeça descaída de melenas negras, e iluminados o casaco azul do pijama e o resto do corpo nu, pela madrugada que entrava, o Amaral pendia. Olhos esbugalhados, os óculos presos de uma orelha, a boca escancarada e com a língua tesa, e quase sentado no chão que as mãos roçavam ossudas, as pernas de pés descalços dobrada uma e esticada, a outra, o sexo como a língua entumescido. A corda fininha começava a dourar-se à luz do reflexo do sol nas vidraças do outro lado da rua. Entre a cama e a mesa, solta do prego, a lâmpada balouçava ainda, imperceptivelmente.
   Quando voltou ao seu quarto - na manhã seguinte? -, abriu devagarinho a porta, entrou, sentou-se na cama. No alarido que haviam feito, e a que se juntara gente da casa (não havia, entre ela, um casal muito jovem, esbaforido e seminu?), o rapaz desaparecera. E depois começara a interminável série de gestos e passadas do ritual que levara o corpo para o necrotério, embrulhado num lençol da cama, de que um joelho e o sexo se obstinavam em espreitar, cor de vinho. Levantou os olhos. O companheiro de quarto dormia serenanente. Não só serenamente. Havia nos cabelos alourados, e caídos sobre a testa e as pálpebras fechadas, no nariz que o ténue respirar afilava a espaços, no ligeiro recurvar dos lábios entreabertos em sorriso, no braço e na mão que se alongavam atravessados sobre o corpo, nos dedos semicurvados como de quem se esquecera, ao adormecer, de segurar um brinquedo, ou se lembrara, dormindo, de pegar em algum, a distensa e prolongada moleza, o repousar tranquilo da criança que dorme. Como que sentindo-se olhado, o companheiro suspirou fundo, torceu-se num espreguiço de que a mão se agitou e, contraída, esboçou fugidiamente a forma de uma garra adulta. Mas, difusa, vinda da janela aberta que dava para o balcão envidraçado, a claridade enchia suavemente o quarto. Descalçou os sapatos, apalpou os pés que lhe doíam agora de quanto não haviam doído nas últimas horas. Numa corrente de ar levíssima, que era mais frescor da manhã que propriamente aragem, o papel rasgado na quadrícula da porta interior, acima da cama, adejava compassadamente, como que ao ritmo do respirar do companheiro de quarto.

Araraquara, 20-22 de Maio de 1962.

 

 

In SENA, Jorge de. Os Grão-Capitães, Lisboa, Edições 70, 1976, pp. 86-108.  

 

 

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